domingo, 19 de outubro de 2008

A estreita curva

CRiando forças, Fernando foi se arrastando pelas encostas daquele trecho da rodovia. Temia não estar na casa de sua namorada na hora marcada para dar-lhe os parabéns. Era dia de festa, mas ele agonizava ainda, um pouco mais, na beira da estrada. Sua moto estava atirada ao chão de asfalto, ainda com o motor ligado, zunindo em sua cabeça, seus ouvidos...
CResce menino!!
O que está havendo comigo, Mere?
Nada, você se esqueceu de novo?
Não, está aqui o seu presente! Veja, um lindo par de chinelos!
O que eu vou fazer com um par de chinelos e ainda de madeira?! - tinha um ar de zomba.
É que... é que eu... - ficou sem jeito.
CRava aqui esta estaca. O corpo deste rapaz vai ter que passar pelo IML para vermos se estava drogado. Achamos este papelote aqui ó na blusa dele.
Que saco! Moleque sem noção. Jovem. Tem algum número de telefone aí que possamos ligar, celular, tem um celular dele aí?
Calma chefe, já ligamos. Atendeu uma tal de Mere e já está vindo pra cá com os pais dele.
Os ventos acresciam ritmo ao movimento das folhas das bananeiras. Fernando estava sentado numa pedra perto da praia de Maresias. Seu corpo já não agonizava, porém já iniciava o processo de putrefecimento. Para ele isto já não era importante. De repente ele levantou-se num salto só. Mere descia pela rua abraçando sua mãe, dona Martinha, e seu pai vinha um pouco à frente, seu Geni. Correu na direção deles de braços abertos e gritando alegremente!
Mere!!
Ela não ouvia...
Mere! Mamãe!!
Nada. Ele nem reparou seu corpo ali esticado e coberto. O policial abriu uma parte do saco deixando à mostra sua face. Era ele. Dona Martinha desabou juntamente com Mere. Seu Geni tinha um ar áustero e manteve sua postura intacta, mas internamente seu corpo queimava. Veio à sua mente como um cometa todos os momentos ao lado de seu filho; quando ensinou-o a jogar bola; a primeira bicicleta; os longos abraços nos fins da tarde; o cheiro de seu filho num beijo de boa noite. Mas ainda estava com a feição séria e mascaradamente inabalável. Qualquer insensível que ali presenciasse aquela cena diria que ele não sentira a perda do filho. Ele só teve forças de dizer, em voz baixa e quase imperceptível:
Nando, meu filhinho, descanse em paz!
E agora "mané", quem banca o prejuízo?
Isto é entre você e o patrão. Foi idéia sua solicitar os serviços deste moleque! Nem dois meses de carteira de motorista e ainda por cima estava iniciando no ramo. O trato é fazer o serviço próximo e aos poucos ir afastando o endereço.
Eu sei e "tô" ferrado! São dois "paus" meu!
Vê lá ein, pede prazo e paga. É melhor. Ah, o moleque que abordamos ontem deu queixa, mas já estamos tomando as "providência".
A caixa estava intocada no canto do quarto dele. Mere entrou na casa e foi abraçar dona Martinha que a acompanhou até o quarto e entregou a ela o embrulho. Mere abriu com cuidado para não rasgar o papel de presente. Dentro havia um par de chinelos e uma carta. Chinelos de madeira trabalho com vime. A carta era um poema de quatro versos, um quatrix:
Quatrix Amor
Amor que se vela
Pelo mar onde linda te vejo
Te abraço e desejo o coração que é meu
Por que este amor é a luz que minha vida leva
Assim Mere deixou a casa dele pela última vez. Os chinelos foram postos não nos pés, mas numa estante chamada coração, para que não seja relembrada aos olhos atentos e sagazes. A vida talvez vá continuar para ela, mais fácil que para os pais que deram a seu único filho carinho e direção, mas um vento forte e sem destino, sem meios, talvez, de ser interceptado, veio e arrebatou sua pouca essência de vida e maturidade.
Onde está o erro? Não sei, sinceramente não sei...