domingo, 29 de março de 2009

Confusões acerca de mim

Foi naquele mesmo dia que acordei pra vida, sabe? Corri tanto pela rua aqui da cidade de São Carlos que quase acabei com o meu coração. “Por quê?” eu sempre me perguntava. Era tão fácil, sabe, não correr riscos e continuar no conforto de uma asa. Esconder-me sem ter razão. Mas aqueles tempos de esconderijo me fez ter hesitação demais. Não suportei mais! Quisera eu que você pudesse-me ver escrevendo estas palavras, só pra sentir o que eu senti, somente para me ver como realmente sou e nunca se importou. Querido pai: você me perguntou recentemente por que eu afirmo ter medo de você. Você se lembra disso? Aquela carta me veio como uma fincada no extremo sul do coração, me dando a impressão de que o mar estava cobrindo meus pés como a uma formiga sendo engolida pelas minhas maldades. É simples lhe responder a isso. De quantos piões no chão eu preciso pra levar uma cintada? Quantas palavras doces eu ouvia antes de uns xingamentos? Quantas pipas nós soltamos antes e depois de sua bebedeira? Os seus olhos eram ameaçadores! E suas narinas exalavam dúvidas no ar como se fosse escapamento liberando fumaça preta de raiva. Ah meu pai, o medo não só ficou lá traz... só pra saber... como me fez amar meu filho como se ele fosse única jóia rara na face da Terra, pois a ele não pretendo negar nem mesmo um passeio no quintal... não é mesmo?
Sabe aquele dia em que a mamãe morreu por conta da faca? Estava em suas mãos, mas nunca lhe disse, nem a polícia descobriu. Sua cabeça estava tão dominada que seu coração era uma pedra imensa... inóspita aos olhos humanos. Neste dia eu fugi, pois sem mamãe o medo iria ser cada dia mais abrasador e me faria um ser – humano cada dia mais triste... e talvez nem chegasse a ser poeta. Neste dia minha vida começou, sem os carinhos e as brincadeiras de bola, mas começou para as brincadeiras de bola e os carinhos do filho que ainda iria nascer como parte de mim.

segunda-feira, 9 de março de 2009

A maldição de Antony

Deu passos suaves através do estreito corredor na esperança de que ele não acordasse, mas a velhice do taco da casa de Antony, construída em 1956 pelo então ilustre arquiteto Loreen Di Grate, rangeu como um cão ladrando à sua inesperada presa. Ele abriu os olhos. Ela o escutou, pois o silêncio que se seguiu após sua pisada foi extremo. Carina sentiu sua espinha gelar desde a primeira vértebra. Era perigoso que o Sr Antony acordasse subitamente, pois seu estado se agravava a cada susto. Ela fechou os olhos e rezou.
A casa, já acocorada pelos imensos prédios, se resguardava na penumbra daquela maldição da dona Mere, esposa de Antony. Por conta de suas escapadas ela o trancou a sete chaves dentro de seu próprio ser fazendo com que tivesse medo de olhar à própria sombra. Somente Carina, sobrinha e filha adotiva de seu falecido irmão, Malec, o escoltava pelos cantos da horrenda. Ele se levantava todas as noites às vinte e três e cinqüenta e nove, tinha medo. Lembrava sempre das palavras de seu pai, "Tenha coragem e siga em frente, meu filho" e sua mãe logo emendava, "Não tema aquele ser!" Antony se agachava junto ao cão desmaiado e cochichava com ele, "Você está vendo esta mão aqui – e mostrava a mão ao cão – já deliciou muita pele sedosa, mas hoje... hoje... – hesitou – hoje não segura nem o mijador direito. Que merda de velhote! – largou o cão e se dirigiu à porta".
Carina ainda permanecia no corredor e ouviu o tio dar passos lentos. Logo que ele tocou a maçaneta ela se agachou e pôs a cabeça entre as pernas. Ele veio vindo pela estribeira e chutou os pés da moça.
- O que queres aqui ainda, maldita! – Antony gritou com prepotência na voz.
- Não sou ela, tio, eu só quero ajudar. – Carina tinha um gemido misericordioso junto com as palavras.
- Pois saia desta casa e me deixe em paz! – Nesta última foi ainda mais raivoso, tanto que chegou a tossir, por não suportar o timbre de suas roucas cordas vocais. – Vamos! Saia! – prostrou-se ante o corredor e manteve o braço e mão direitos esticados e apontando o olho da rua.
Carina levantou-se e correu, mas parou a meio caminho da porta e olhou para trás. O tio a encarava com austeridade e lá de longe fez um gesto indicativo com o braço novamente solicitando a saída da sua quimera. Foi-se.No meio tempo de um minuto que se seguiu e foi logo que ele se levantou, ele decidiu estragar tudo novamente. Era treze de fevereiro do ano corrente. Ele pediu a morte e a morte não veio. Carina sentada no canto do corredor segurou seu coração e pediu que ele não fosse até ali, onde ela morria, para tê-la como a um espúrio nada. E é nada de nada. E tanto fez mal a ela naquele mísero segundo que a morte resolveu por levá-lo, assim, instantaneamente, foi que Mere reapareceu quando a luz da cozinha foi acendida. Antony arregalou os olhos, estribuchou o corpo e caiu duro sobre o chão de piso português. A casa rangeu com força para que Carina ouvisse a morte do tio, mas era tarde... ela já tinha partido para sua vida...