sábado, 19 de fevereiro de 2011

Cinismo

Coração na mão e garganta dando nó. Olhava para o lado e via somente um clarão. Foi logo após a queda, os pés pesavam sobre o chão de fogo. Tudo queimava em seu corpo. E mesmo assim ainda pensava naquele corpo, naqueles olhos, naquela voz, na felicidade que estava planejando conceder a ela, mas foi só isso, apenas lembranças. Os olhos de repente começaram a ficar mais pesados e foi então que sentiu um gosto metálico que escorria pelo canto superior dos seus lábios até encontrar a língua ávida por água.

A queda foi estranha, dizia ela ao médico, Estávamos na sacada e ele dizia coisas estranhas como ir a um certo lugar em que as aves pousam nas mãos para se alimentar, continuou, Ele falava às vezes de uma poesia escondida e que a vida que vivia era medida pelo quanto ele conseguia se manter firme ante seu maior desejo. Foi assim que disse, questionou um dos médicos. Foi, mas por que o espanto? Ele chegou aqui inconciente, depois de algumas medicações ele ameaçou acordar e começou a dizer algumas palavras incompreensíveis, dizia 'minha poesia, minha poesia, preciso dela' depois o sedamos, ele já suava demais.

Pela janela dos olhos a porta estava engraçada 'Quem diabos instalou uma porta para ela abrir de lado?'. Ouviu um grunhido, mas não conseguiu se mover. Que merda, pensou, Minhas pernas não me obedecem. Olhou de novo pra porta na esperança de que alguém viesse dali. 'Estou aqui há dois anos já e ninguém ainda apareceu?' pensou, certo de que os trinta segundos tinham feito sua barba escorregar pelo piso frio. Vez por outra seu abdomen se contraía de dor, mas nada sentia, era analgésico demais para se dar conta de que sua forma física estava tão debilitada quanto um animal atropelado por uma carreta numa auto pista. Tentou ficar calmo, mas os pensamentos eram raros e inconstantes, nem sequer conseguia se concentrar na porta instalada de lado em sua casa.

Ele não está nada bem, disse o médico chefe a sua noiva, Se ele conseguir sobreviver ficará marcado por todo o corpo e provavelmente nem ande mais. O que podemos fazer doutor, perguntou ela sentindo que de sua garganta já não saía mais a voz em tom audível. Sinto muito, Muito mesmo, Mas no momento você pode apenas orar, tentou confortá-la, E ir para casa descansar.

Em casa fuçou umas coisas que não pertenciam a ela, mas a ele. Nada encontrou de novo, a não ser umas poucas folhas com escritos, alguns cadernos vazios que aguardavam serem preenchidos. Num canto do quarto, próximo ao pequeno guarda roupas encontrou uma peça de roupa íntima e amaldiçoou o quase falecido. 'De quem será esta droga de calcinha lilás???' Esbravejou. Ainda bem que apenas somos namorados. 'Que saco!'

Ajoelhou-se em frente do Altíssimo na paroquia da cidade e orou: Deus salve este pobre coitado! E a mim dai-me um novo namorado! Que seja mais educado e sincero... Amém!

Que horas são doutor? Já é hora de você ir pra casa... Quem vai levar você? Não sei, ela não veio?