segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Resquício

E um dia você acorda e percebe que está tudo errado. A começar pela escova de dentes posicionada na prateleira errada. O shampoo fora do lugar. A toalha molhada em cima da cama. A chuva do lado de fora. O café frio na garrafa. A sensação de que foi em vão a noite passada. Enfim uma porção de sentimentos confusos que fazem diferença nenhuma, mas que atrapalham muito o desenvolver do cotidiano.
Um dia você acorda simplesmente sem saber se tudo vai dar certo. 'Deu alguma vez?' - ele se pergunta. Ao mesmo tempo que observa os cachorros comendo a ração recém colocada. Os gatos também estão se deliciando, dando seus espasmos de gratidão.
Um dia você acorda e percebe as coisas pequenas que lhe rodeiam, mas neste dia os dias já são tardes demais para abrir o sorriso. Resta apenas uma sensação de que nada precisa ser colocado de lado para valer à pena.

__ Parado de novo em frente ao açaizeiro?
__ Sim, estou apreciando como cresce bonito.
__ O que está a pensar? - ela perguntou com rispidez na voz.
__ Nada demais. Uma poesia que passou pela minha cabeça e que estou me esforçando para me recordar quando estiver na frente do computador... - parou nisto e esqueceu.
__ Sempre assim?

Saiu dali. Deu meia volta no passo e olhou na direção da porta de entrada da casa. O que haveria de mais agudo no seu coração do que manter distância daquilo que lhe fazia humano. Desfez de sua bagagem pesada e sentou-se na grama.

__ Lana, deita, fica!

Disse ao cão e se virando para o portão deu alguns passos firmes com a mistura de coisas que travavam sua mente e que não condiziam com a leveza que trazia na alma. Deixou uma lágrima rolar em seu rosto enquanto caminhava, em círculos desta vez. Alguém estendia a roupa no varal da casa ao lado. Ele ouvia os barulhos que o estender proporcionava. Tinha um aroma suave no ar de roupa limpa. Sentiu seu coração pesar. Do lado de dentro de seu corpo haviam roupas sujas que vestiam sua alma. Precisava de alvejante de alma e urgente!

__ Você vai ficar muito tempo fora? - ela perguntou, já com a voz pesada entre um alívio e uma tortura.
__ Não sei quanto tempo vou caminhar, mas espero caminhar bastante.
__ Não demore a voltar, vai levar o cachorro?
__ Não. Ela não aguentaria mais que uns dois quilômetros. - disse já chegando no portão.
__ Suas coisas, não vai levar?
__ Não quero nada de mim.

O portão fechou atrás de si e um choro ouviu. Não conseguiu percorrer até a rua. Ficou travado do lado de fora. Uma criança numa bicicleta azul passou e acenou. 'Maldita cor azul!' - pensou e acenou de volta.

__ Não se demore. - disse para si baixinho.

O portão se abriu.

__ Disse algo? - a voz veio de uma pessoa diferente - entre logo, já vai chover!
__ Em que ano estamos? - perguntou ele à pessoa desconhecida.
__ 2025, por que?

Dormiu na rua, abraçado a um jornal. Conferiu a data. Dia presente, dia em que nasceu. Por que um dia você acorda e percebe que os anos passam, mal ou bons, eles passam.

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